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Dias de mansos recortes

Dias de mansos recortes

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Dias de mansos recortes

Nestes dias, logo de manhã, quando me levanto, sinto uma coisa diferente atravessar-me de alto a baixo. Não sei do que se trata exactamente mas desde que ponho os pés fora da cama pressinto logo a estranheza do dia a entrar-me devagarinho pela sola dos pés e depois a subir-me em onda vaga mas segura pelo corpo acima até chegar-me ao cerne da alma e aí instalar-se como uma névoa anunciadora não sei bem de quê. Às vezes este sentimento e esta estranheza são tão acentuados que me sinto fora da vida. É como se tivesse acordado e não me lembrasse de nunca ter vivido naquele mundo que me rodeia, mundo este que deveria aparecer-me como algo de familiar pois que já ali habito desde há pelo menos quarenta anos, algo de distante me parece dizer. Sintome então vazia e com um medo horrível de sair do quarto e depois da casa para entrar nas ruas, onde já pressinto, tudo e todos me vão aparecer como distantes fantasmas que nada me dizem e que parecem ser feitos de uma outra matéria que não a minha.


Mas às vezes este medo existencial do desconhecido tem um aspecto sublime, e em vez de cair na agonia habitual, outra coisa me acontece: sinto-me leve, leve, com uma tendência a querer levantar voo, ou então com uma vontade enorme de criar sentido para um mundo que nenhum tem. Penso então nos nossos humanos antepassados do Egito, da Nigéria, da Grécia, da Alemanha e de todos os outros nos vários cantos do mundo, onde, há muito tempo atrás, uma história sobre a verdade do mundo começou. Penso neles e reflicto ainda sentada na cama com os pés assentes no tapete de felpo, que ainda quente me parece alheio, e pensando vou chegando a uma conclusão: como é que neste mundo onde hoje me encontro, começarei a viver? Como é que nesta estranha absurda realidade sem realidade que algum sentido para mim faça conseguirei eu mesma engendrar uma história que faça sentido e sentido dê à minha vida que agora me aparece branca e leitosa como se eu estivesse metida dentro duma cegueira não religiosa como aquela que o Saramago invoca no seu grande ensaio?


Penso nesta e naquela hipótese e depois levanto-me completamente saindo daquela posição de sentada em que me tinha posto desde que acordei da noite e entrei no nada de uma manhã sem sentido ainda decifrado. Levanto-me e ando devagar pela casa inteira cheirando cada canto, tentando lembrar-me se alguma vez já aí vivi e se ainda a quentura do meu corpo se manifesta nas arestas cortadas da madeira que mostra já (noto agora) sinais da passagem do tempo, detalhe este que reafirma que de facto o mundo já há muito existe e não sou eu a única viajante neste caminho - mesmo que hoje me pareça que nada nem ninguém tenha ainda sentido definido. E no entanto, depois de muito ver e notar, não consigo encontrar elemento, por mais pequeno que seja, que me traga memória de mim mesma naquelas arestas e nas frestas que aí se visualizam. Penso que esses cantos e os sinais que aí moram pertencem às outras gentes, gentes que viveram noutros tempos e obecedoras de outras filosofias. E, portanto, o sentimento de estranheza daquele dia reafirma-se e eu, sonâmbula dos tempos, continuo pela casa fora, demorando-me em cada canto e aí apreciando as nódoas daquilo que existiu antes deste dia de hoje, quando eu acordei sem saber onde estava e como ali tinha chegado.


Entro na cozinha e sinto um cheiro que sem ser familiar não me parece de todo estranho. Permaneço ali naquele compartimento daquela casa com os olhos fechados durante momentos e depois ando em círculos; apoiando as minhas mãos nas bancas e parapeitos tento receber a existência daquele lugar. Primeiro custa-me entender as mensagens que me chegam pelas mãos e pelos olhos da alma, mas depois concentro-me com mais atenção e começo então devagarinho a perceber que ali, naquele exacto lugar, existem memórias de mim e de muitas outras pessoas, murmúrios a dizerem-me que, ainda que o mundo já tivesse tido um sentido muito próprio, isso não impedia que eu hoje, neste dia solene e nubloso, não pudesse ser a autora de outro livro onde páginas e páginas de histórias de grandes amores começassem a desabrochar como lindas alfazemas líquidas e possuidoras de aromas do outro mundo, perfumes santos que nos limpam as narinas e fazem com que a alma se embebede de brincadeiras celestiais.


Esse sentimento ou essa mensagem que recebo dá-me grande coragem e então continuo passeando por outros compartimentos da casa à procura de outras lembranças, de outras vozes que me cheguem de qualquer modo, informando-me que estamos só no começo do mundo e que, portando, tudo (tudo) é possível. E de facto isso acontece: no quarto de banho dispo-me da roupa da noite e abro o chuveiro com júbilo, e em câmara lenta, metendo-me debaixo da água como sereia sequiosa do mar onde tudo e todos nadam juntos para chegarem ao princípio do mundo quando uma molécula disse sim a outra e o amor foi feito pela primeira vez. Tenho agora (neste momento em que escrevo) um déjà-vu e sei intrinsecamente que esta metáfora já por mim foi usada noutro livro, noutra língua, e sei também que não sou eu mesma a autora inédita de tal alegoria*, como se o mundo não fosse mais que uma roda, uma roda que gira e gira sempre repetindo os mesmos movimentos ainda que tocada por ventos diferentes. A água entra-me em cada canto do meu corpo, em partes côncavas e planas e sinto em cheio a sensualidade das minhas células de repente acordadas para o prazer do mundo, o prazer da vida, que afinal não é mais que o prazer do corpo e o latejar sexual que a todos nos lembra que somos animais e que prontos para o forjar da vida estamos.


Depois limpo-me devagar, fazendo amor comigo própria e nesse movimento encontro ainda mais novidade sobre a minha vida, mais vontade de sair à rua e passear com o meu corpo ondulando-me ao sabor do vento e sorrindo a todos os passageiros do mundo, homens e mulheres, crianças e adultos, como que a dizer-lhes que viver não custa nada, basta simplesmente acordar esquecida dos sonhos de outros dias e então a possibilidade vai chegando, ou em jacto, ou vagarosamente, depois de muita concentração, vai chegando cintilante sibilando novas mágicas. A seguir vem o ritual do vestir: ponho íntimas roupas e meias de vidro para que o meu corpo siga vísivel e transparente para os muitos admiradores por quem vou passar quando sair à rua, finalmente pronta para enfrentar a multidão. E por fim, para acabar a festa de enfeite, cubro-me com folhos invísiveis de renda leves, como aquelas que as mulheres de antigamente usavam quando entravam nas igrejas solenamente para um encontro secreto com a ideia de Deus.


Ao passar pela sala, o último compartimento antes de chegar à rua, vejo-me no espelho grande que aí se estende no movimento perfeito da larga parede. Aí encontro uma senhora de grande presença que sorri para mim e me diz: és tão bela que nem a brisa suave da primavera te consegue fazer vacilar, tão real que nem a memória com todos os seus truques do esquecimento próprio do tempo consegue apagar, tão certa de si própria que a partir de hoje jamais te esquecerás que já exististe. Depois, assim tão positivamente assegurada, dou uma volta em leque redondo, como se dançarina bailarina de um fado não alexandrino fosse, e aproximo-me da janela para ver de longe o que se passa lá em baixo na rua que bule cheia de vida. Esse gesto dá-me força, e, sem mais adiamento, abro a porta para a rua e aí entro em cheio tal qual uma mulher fatal que sabe que a vida que está em frente dela está aberta a todas as possibilidades e que claras memórias, aquelas que a grande e sã alma jamais consegue esquecer, estão à espera, prontinhas a gravar-se no âmago do seu ser. Eternamente. Pena de pássaro que varre, mansa e mansa, acariaciando a pele por dentro e por fora. Lembrança do eterno berço oscilante que embala como que para sempre navegando no contínuo movimento das ondas de um mar acalentador. Onde tudo começou e tudo acabará. Um rosário cheio de Ave-Marias. Ou um mantra de padre budista. Talvez mesmo a curva côncava de deusa Celiqueima. Quando eu era menina e tua a jóia dos meus mimos.


*Referência ao livro de poesia da autora The Circular Incantation: An Exercise in Loss and
Findings.
**Referência a Água Viva de Clarice Lispector.

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